A proposta do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, de criar um código de conduta específico para ministros da Corte expôs um paradoxo incômodo no topo do Judiciário brasileiro: a mesma instituição que cobra padrões elevados de legalidade, moralidade e transparência dos demais Poderes enfrenta resistência interna quando o debate se volta para regras que incidam sobre seus próprios integrantes.
A ideia de um código não é inédita. Tribunais constitucionais de democracias consolidadas — como Alemanha, Estados Unidos, França e Reino Unido — já adotam normas claras para disciplinar a conduta de seus magistrados, sobretudo em temas sensíveis como participação em eventos, recebimento de benefícios, palestras remuneradas, entrevistas, relações com entes privados e prevenção de conflitos de interesse. Em alguns países, como os EUA, a adoção de regras só ocorreu após escândalos que abalaram a credibilidade da Suprema Corte.
No Brasil, foi semelhante. A proposta ganhou força após a revelação de que o ministro Dias Toffoli viajou para a final da Libertadores em jatinho particular ao lado de um advogado ligado ao Banco Master — investigação da qual é relator — e, dias depois, decretou sigilo sobre o caso. Episódios assim não configuram, necessariamente, ilegalidade, mas escancaram um problema central: a erosão da confiança pública causada pela aparência de proximidade indevida entre magistrados e interesses privados.
O argumento contra: “não é o momento”
Nos bastidores do STF, a resistência ao código se apoia principalmente em três argumentos. O primeiro é o “timing”. Ministros avaliam que discutir regras internas agora poderia fragilizar a Corte justamente quando o Senado debate mudanças na Lei do Impeachment e setores políticos pressionam por responsabilizações, sobretudo após a atuação do Supremo contra a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
O segundo argumento é institucional: haveria risco de expor divergências internas e alimentar narrativas de crise, em um momento em que o STF busca demonstrar coesão diante de ataques externos. O terceiro é pessoal e menos explicitado: parte dos ministros não demonstra disposição em abrir mão de práticas consolidadas, como participação frequente em eventos patrocinados por grandes empresas, viagens internacionais custeadas por terceiros ou atividades extrajudiciais de alto prestígio.
Há ainda críticas ao estilo de Fachin, visto como reservado e pouco articulador, o que teria contribuído para o mal-estar ao trazer o tema à tona sem amplo consenso prévio. Ou seja, Fachin é criticado pelos pares por ter perfil de juiz, e não de político.
O contraponto: reputação também é poder
Especialistas em direito constitucional e governança judicial apontam que esses argumentos invertem a lógica do problema. Para eles, não é o código que fragiliza o STF, mas a ausência de regras claras. A experiência internacional mostra que normas de conduta não reduzem a independência judicial — ao contrário, a protegem.
Um código simples e objetivo daria à sociedade parâmetros claros para avaliar comportamentos e cobrar responsabilidades, sem recorrer a soluções extremas como o impeachment.
O ex-ministro Celso de Mello foi ainda mais direto ao classificar a adoção de um código como “moralmente necessária e institucionalmente urgente”, disse ao jornal O Globo. Para ele, confiança na Justiça não depende apenas da honestidade pessoal dos juízes, mas de regras que impeçam qualquer aparência de favorecimento.
O que o STF ganharia com um código
Um código de conduta não serviria para punir ministros, mas para prevenir constrangimentos, padronizar práticas e oferecer segurança institucional. Diretrizes sobre transparência em eventos, recebimento de valores, relações com escritórios de advocacia ligados a familiares e manifestações públicas poderiam reduzir zonas cinzentas que hoje alimentam desconfiança social e discursos de deslegitimação.
Além disso, a iniciativa permitiria ao STF retomar o controle da própria narrativa. Em vez de reagir a denúncias pontuais, a Corte demonstraria disposição para o autoexame e para a autocontenção, valores centrais em democracias maduras.
Resistência que revela o problema
O desconforto gerado pela proposta de Fachin acaba funcionando como prova de sua necessidade. Se regras claras causam tanto incômodo, é porque tocam em práticas que hoje operam sem limites definidos. Em um tribunal que julga conflitos bilionários, disputas políticas e temas sensíveis à democracia, a ausência de parâmetros específicos para seus membros tornou-se um risco institucional.
Ao resistir ao código de conduta, parte do STF parece temer não a perda de independência, mas a perda de liberdade para atuar em um espaço onde ética ainda depende mais da consciência individual do que de regras coletivas. O paradoxo é evidente: para preservar sua autoridade, o Supremo talvez precise aceitar, antes de tudo, ser regulado por si mesmo.